A história brasileira parece condenada a reviver seus fantasmas mais sombrios. O golpe militar de 1964 e os eventos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, embora separados por quase seis décadas, revelam uma perturbadora continuidade na relação entre as Forças Armadas e o poder civil no Brasil. Especialistas ouvidos pela Agência Brasil apontam que, em ambos os casos, setores militares agiram movidos por uma visão distorcida de seu papel institucional, arrogando-se o direito de intervir no processo político e questionar a vontade popular expressa nas urnas. Essa postura, enraizada numa cultura castrense que se recusa a aceitar a plena subordinação ao poder civil, constitui uma ameaça permanente à frágil democracia brasileira.
O professor Manuel Domingos Neto, historiador especializado em estudos militares, traça um paralelo inquietante entre os dois momentos. “A mentalidade que levou ao golpe de 1964 nunca foi completamente erradicada das fileiras militares”, afirma. “O que vimos em 2023 foi a reafirmação dessa visão arcaica que coloca as Forças Armadas como guardiãs da nação, acima das instituições democráticas.” Essa percepção, segundo o acadêmico, é alimentada durante toda a formação dos oficiais, criando uma cultura corporativista que dificulta a plena integração das Forças Armadas ao Estado democrático. A insistência em manter privilégios e espaços de poder que deveriam ser exclusivos da esfera civil – como a participação em cargos políticos e a influência sobre políticas públicas – revela a resistência em aceitar os princípios básicos de um regime verdadeiramente democrático.
A professora Carla Teixeira, da Universidade Federal de Uberlândia, destaca que tanto em 1964 quanto em 2023, os militares demonstraram profunda dificuldade em aceitar governos eleitos que não se alinhavam a suas preferências ideológicas. “Em ambos os casos, havia uma clara rejeição à alternância de poder”, explica. “A diferença é que, em 1964, conseguiram impor sua vontade através da força, enquanto em 2023 esbarraram numa sociedade mais vigilante e em instituições que, embora fragilizadas, ainda mantinham algum compromisso com a ordem constitucional.” A historiadora ressalta que o episódio recente deixou claro como setores das Forças Armadas permanecem reféns de uma visão maniqueísta da política, dividindo a sociedade entre “patriotas” e “traidores”, numa lógica que remonta aos piores momentos da Guerra Fria.
Rodrigo Lentz, cientista político especializado em relações civis-militares, aponta para o caráter reacionário comum a ambos os movimentos. “Tanto em 1964 quanto em 2023, o que motivou a ação militar foi o medo de transformações sociais mais profundas”, analisa. “Na década de 1960, o fantasma era a reforma agrária e as ligas camponesas; em 2023, era o espectro das políticas sociais e da redução de desigualdades.” Essa postura defensiva dos setores conservadores, muitas vezes aliados a parcelas do empresariado, revela como as Forças Armadas brasileiras continuam a se ver como o último baluarte contra mudanças que consideram ameaçadoras, mesmo quando essas mudanças representam a vontade da maioria expressa através de eleições livres.
As diferenças entre os dois contextos históricos, no entanto, são tão reveladoras quanto as semelhanças. Em 1964, os militares contaram com amplo apoio da classe média, da imprensa tradicional, do empresariado e, crucialmente, do governo dos Estados Unidos, que via com preocupação qualquer movimento que pudesse aproximar o Brasil da esfera de influência soviética. Em 2023, essa coalizão golpista mostrou-se frágil e dividida. “O mundo mudou, o Brasil mudou”, reflete Lentz. “A sociedade brasileira contemporânea, apesar de todas suas contradições, já internalizou valores democráticos que eram incipientes ou inexistentes nos anos 1960.” A rejeição internacional a aventuras autoritárias, num contexto geopolítico radicalmente distinto, também pesou contra os planos golpistas mais recentes.
O desafio que se coloca para o Brasil contemporâneo é como superar definitivamente essa cultura militar que insiste em se colocar acima da sociedade civil. Os especialistas são unânimes em apontar que, enquanto persistir a ideia de que as Forças Armadas têm o direito – ou mesmo o dever – de intervir no processo político quando julgarem necessário, a democracia brasileira continuará sob ameaça. A solução passa necessariamente por uma profunda reformulação do papel dos militares na sociedade, com a consolidação de mecanismos efetivos de controle civil e a reafirmação inequívoca do princípio básico de que, numa democracia, as Forças Armadas devem estar subordinadas ao poder eleito, e não o contrário. O preço da negligência nessa área pode ser a repetição interminável de crises institucionais que impedem o país de superar seus traumas históricos e construir um futuro verdadeiramente democrático.